Pedro Pita Barros escreve, no Jornal de Negócios, sobre A liberalização da abertura de farmácias:
"Recentemente, a Autoridade da Concorrência (AdC) divulgou um estudo sobre a actividade de retalho farmacêutico, as farmácias propriamente ditas. As recomendações constantes deste estudo apontam, desde logo, para três aspectos: liberalização da abertura das farmácias, eliminação da restrição de que apenas farmacêuticos possam ter a posse de farmácias e a possibilidade da venda pela Internet. Outros estão presentes no estudo, mas cabe aqui discutir os três primeiros. Todos eles são capazes de suscitar reacções emotivas, sobretudo por parte das entidades afectadas. É, por isso, fundamental entender o que possa haver, ou não, de mobilidade nas propostas e contra-argumentos.
Toma-se o primeiro aspecto, liberalização da abertura das farmácias, por questão de espaço. Actualmente, a abertura de uma nova farmácia está dependente do cumprimento de critérios de dimensão da zona que irá abranger. A restrição à entrada cria uma distinção entre os que têm uma farmácia e os que não têm essa possibilidade, mesmo mantendo a restrição da propriedade para os farmacêuticos. Não serve, à primeira vista, qualquer propósito para além de gerar bons lucros para quem consegue obter autorização para ter uma farmácia. Adicionalmente, impede que quem tenha ideias para melhorar o serviço prestado, ou as condições em que o mesmo é feito, as possa colocar em prática. Sendo verdade que a liberalização deverá levar à abertura de novas farmácias, quais são os prováveis efeitos dessa abertura? A resposta a esta questão deverá permitir identificar quem ganha e quem perde, e no final, se vale ou não a pena avançar com essa liberalização. O aspecto mais imediato é que com a abertura de novas farmácias, o valor de ter uma já em funcionamento diminui. O valor de trespasse de uma farmácia cairá rapidamente. Tal constitui uma transferência de riqueza, ainda que implícita, dos que têm hoje uma farmácia para os que venham a abrir uma nova farmácia. É um efeito considerável a atender nos valores de trespasse de farmácias que por vezes têm sido conhecidos.
Um segundo efeito é o de com mais farmácias existir uma maior cobertura, e porventura mais eficiente, do país. Pode-se argumentar que essa cobertura também pode ser determinada centralmente, e com base nas necessidades de saúde da população. Contudo, essa visão assume que um “planeador central” consegue ter uma melhor percepção das vantagens e oportunidade de estabelecimento de uma farmácia do que um farmacêutico (por exemplo, e mantendo a restrição sobre a propriedade) que conheça a realidade local. Mais, critérios simples e genéricos terão sempre dificuldade em acomodar realidades específicas, que possam justificar eventualmente uma nova farmácia. Adicionalmente, impede que uma farmácia possa vir a substituir outra, por oferecer melhor serviço, ou outro aspecto qualquer mais valorizado pelos cidadãos. Com as regras actuais de abertura de farmácias, uma vez obtida a posição numa determinada área geográfica, e sobretudo se for a única farmácia numa área geográfica alargada, a disponibilidade para a farmácia se centrar no utente é certamente menor. A possibilidade de abertura de mais farmácias, mesmo que não ocorra, constitui sempre um incentivo a que cada farmácia esteja voltada permanentemente para o cidadão. É verdade que, regra geral, as farmácias têm actualmente uma boa imagem junto da população, muito tendo contribuído para isso o esforço da modernização realizado desde há bastante tempo (liderado em grande medida pela Associação Nacional de Farmácias, permitindo com isso criar economias de escala nalgumas das medidas tomadas). Mas, então, no pior dos cenários, essa liberalização da abertura não teria impacto visível, para o elevado nível de qualidade já prestado, e para preços dos produtos que não são fixados pela farmácia, apenas farmácias que tenham capacidade de oferecer maior qualidade terão possibilidade de vingar. A liberalização de algumas permite, eventualmente, obter valor social por substituição de algumas farmácias por outras que venham mais de encontro aos interesses dos cidadãos.
É igualmente referido, por vezes, que a liberalização da abertura de farmácias criaria ainda mais desigualdades entre o interior e o litoral, entre as zonas mais rurais e as zonas urbanas. Para este argumento, o estudo desenvolvido para a Autoridade da Concorrência tem o mérito de o desmontar muito facilmente. Não existindo neste momento qualquer subsídio material ao estabelecimento e desenvolvimento da actividade de uma farmácia, as que existem actualmente são naturalmente rentáveis na zona geográfica em que se inserem. A liberalização da abertura de farmácias não altera em nada essa rentabilidade – quanto muito obriga a dividir essa rentabilidade por mais de uma farmácia. Nas zonas em que apenas uma farmácia é rentável, não há qualquer motivo para deixar de existir essa farmácia. Não há assim que ter receio de que a liberalização da abertura de farmácias venha a desproteger determinadas populações? Em grande medida, não. Mas como em tudo, há que atender a situações específicas que possam surgir. Tome-se por exemplo uma zona em que coexistem uma população envelhecida, que precisa de acesso a uma farmácia de proximidade ao seu local de residência, e uma população jovem, com elevada mobilidade, nomeadamente para o local de trabalho. Podendo essa população de maior mobilidade optar entre farmácias da zona de residência e da zona de trabalho, a liberalização da abertura de farmácias, por aumentar a oferta disponível na zona de trabalho, poderá deslocar a procura inerente a essa população com mobilidade nessa direcção. Se o desvio de procura para fora da zona de residência for significativo, apenas a população envelhecida e de fraca mobilidade poderá não ser suficiente para manter a rentabilidade da farmácia dessa zona. Neste caso hipotético e estilizado, a abertura de novas farmácias, por induzir uma alteração do padrão geográfico de utilização da farmácia, poderia vir a prejudicar um segmento da população particularmente vulnerável.
Será este um argumento suficientemente poderoso para impedir a liberalização da abertura de farmácias (e que corresponde a manter uma transferência implícita das gerações mais novas, com maior mobilidade, para as gerações mais idosas, com menor mobilidade)? Depende da sua aderência à realidade, da importância que se der ao impacto sobre grupos eventualmente mais vulneráveis e da inexistência de outros instrumentos que permitam ultrapassar esses impactos negativos.
Deve-se também pensar no potencial efeito da abertura de novas farmácias sobre o consumo de medicamentos. Se a abertura de novas farmácias criar consumo desnecessário de medicamentos, por diminuir o custo não monetário de aquisição destes, então haverá aqui um efeito negativo. Mas sendo a procura de medicamentos determinada sobretudo pela actividade médica, e não pela actividade farmacêutica, não parece plausível que esse seja um efeito particularmente forte.
Por fim, é de realçar que o estudo apresentado à AdC refere um factor económico, normalmente ignorado, que consiste numa tendência para abertura exclusiva, do ponto de vista social, de farmácias pelo simples facto de cada farmácia obter parte da sua rentabilidade à custa da diminuição dos resultados de outra. O valor que a farmácia cria tem uma componente de melhor serviço e mais disponibilidades para a população (valor social positivo) e uma componente de transferência de valor que era apropriado por outras farmácias (valor social neutro, por se tratar de uma transferência). Uma vez mais, não é claro que este efeito seja suficientemente forte para se defender a situação actual face a uma situação de liberalização.
Embora a intuição imediata de um economista seja pensar que as actuais regras de restrição à abertura de farmácias geram apenas rendas económicas a favor dos actuais proprietários, sem justificação económica para tal, é de tomar em consideração, de forma séria, os possíveis argumentos contrários. O estudo divulgado pela Autoridade da Concorrência é certamente um bom primeiro passo nessa discussão. As reacções de natureza mais corporativa, e apenas usando argumentos desse teor, devem dar lugar a uma discussão informada sobre os reais impactos da liberalização da abertura de novas farmácias. Para outra altura, fica o debate sobre as restrições ligadas à propriedade."